Entre beats, bênçãos e bifurcações:
a travessia da geração que nasceu com cheiro de terra molhada e acorda com notificações no rosto
Somos a geração que nasceu na infância analógica e virou adulta em um mundo digitalizado demais.
Carregamos nos ombros a travessia de séculos condensados em poucos anos.
Vimos o fax virar filtro.
A TV de tubo virar smart.
A carta manuscrita virar emoji.

Somos a geração ponte — não por escolha, mas por destino.
Nos deram o papel de interligar o que já foi ao que ainda nem sabemos o que será.
Carregamos a memória afetiva do que era ter tempo,
e a urgência esmagadora de viver tudo ao mesmo tempo agora.

No nosso bolso, um mundo inteiro:
dinheiro, amor, ódio, opinião, passaporte, julgamento e aplausos — todos comprimidos em uma tela.
Mas ninguém nos ensinou a navegar esse tudo.
Ninguém nos deu manual de instruções pra lidar com a velocidade da luz e o peso da história.
Ainda assim, a gente inventa passo,
dança sobre o abismo,
se olha no espelho estilhaçado do tempo e diz:
“Tô aqui. Não sei como, mas tô.”

E é nessa travessia, no meio do furacão, que a arte floresce.
Como uma flor nascendo no asfalto quente.
Como uma batida de funk que ecoa pelas vielas e explode nos palcos internacionais.
Como um filme que nos atravessou lá em 1999 — Central do Brasil.
Dora e Josué, num Brasil seco, mas cheio de humanidade.
Naquela época, nos faltava estrutura para aplaudir com o barulho que merecíamos.
Hoje, em 2025, não falta mais.
Agora temos voz, temos rede, temos alcance.
E acima de tudo, temos consciência…
Ainda Estamos Aqui!

Sabemos que a arte não é só entretenimento.
É denúncia, é memória, é cura.

E no meio dessa revolução silenciosa — ou nem tanto —
ela surge: Larissa de Honório Gurgel.
A menina da laje que virou avatar pop.
Anitta é o nome que o mundo conhece.
Mas é Larissa que sente, chora, se despede e se reinventa.
Anitta é espada. Larissa é sangue.
Juntas, elas são Brasil em carne viva.

Elas são a representação perfeita do que somos:
um povo que precisa criar personas para sobreviver.
Uma mulher que se arma de personagem pra continuar sendo ela.
Que dança com fé, rebola com propósito, canta com o peito aberto e os orixás nas costas.
Logun Edé protege sua doçura e guerra.
Omolu cobre suas dores com palha sagrada.
Exu abre o caminho — e sorri.

E junto a ela, outras vozes se levantam.
Ludmilla, que começou no proibidão e hoje canta samba como quem carrega gerações.
Majur, que se deita na ancestralidade como quem repousa na própria história.
Jup do Bairro, que transforma seu corpo em território, sua estética em faca e flor.

E a moda? A moda finalmente escuta.
Desce do salto colonizado e pisa firme na terra vermelha do Brasil profundo.
Hoje, as passarelas não são mais linhas retas: são curvas de sobrevivência.
São corpos negros, trans, periféricos, indígenas, gordos, reais.
A passarela se curva diante do tambor.
A estética se ajoelha diante da espiritualidade.

Oxum brilha em cada paetê.
Ogum está na costura dos tecidos de luta.
Iansã assopra o novo nos editoriais.
E Exu — sempre ele — se diverte vendo o luxo tentar acompanhar a ginga.

O Brasil hoje não pede espaço.
Ele invade com elegância.
Ele chega no Tropkillaz na trilha da Apple.
No “grammy latino”, no desfile de moda, no top 10 do Spotify.
Chega nas fotos borradas do subúrbio que viram conceito.
No boné torto que virou tendência.
Na gíria que a elite agora copia — mas que nasceu no batuque de quem nunca foi ouvido.

Somos o país que samba com dor e sorri com a alma.
Somos o povo que faz do improviso sua engenharia,
da gambiarra sua arquitetura emocional,
e da reza sua assinatura espiritual.

A espiritualidade brasileira não cabe numa estante.
Ela vibra nos terreiros, nos carnavais, nos palcos, nas redes sociais.
Ela está no “amém” e no “axé”, no “aleluia” e no “salve minha mãe”.
Está nas avós que benzem e nas travestis que brilham.
Está na marra do passinho, na roda de jongo, no trançado do cabelo, na estampa que fala.
Está nos corpos que resistem,
nos beats que curam,
nas frases que nos fazem respirar fundo e dizer:
“É isso.”
E sim, é isso.
Somos essa geração híbrida, líquida, elétrica e, ainda assim, ancestral.
Somos o futuro que ninguém previu,
e o passado que ninguém conseguiu apagar.
Carregamos o Brasil no peito —
e mesmo quando sangra, mesmo quando dói,
a gente desfila.
Com garra, com afeto, com história.
A gente dança.
A gente reza.
A gente entrega.

E tudo isso — esse manifesto vivo —
é só o começo… é uma ponte!
Foto: Reprodução
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