Do agente Anderson Meyer ao maquiador Marcos Costa, passando por modelos menores de idade levados sozinhos para outros estados, castings falsos em apartamentos, favores sexuais travestidos de oportunidade e um inquérito ainda em curso na Polícia Civil de São Paulo: a reportagem da revista piauí acende um holofote incômodo sobre a moda brasileira e nos obriga a conectar essa trama às grandes denúncias globais contra Gérald Marie, Mario Testino, Bruce Weber e Terry Richardson, revelando os abusos e assédio sexual na moda brasileira.

Por Fábio Lage – House of Models
Essa notícia me acertou em cheio, com uma força avassaladora e silenciosa. Não foi só mais uma pauta de moda, mon amour… longe disso. Foi como se cada linha da reportagem da revista piauí, escrita brilhantemente pelo colega jornalista João Batista Jr., arrancasse uma casca antiga e me obrigasse a reviver na pele tudo o que eu lia e compreendia ali.
Eu nunca tornei isso público porque é íntimo, doloroso e ainda está em processo de superação. Escrever este artigo aciona gatilhos que às vezes eu finjo não entender, mas a verdade é que eu sei exatamente de onde eles vêm: aos 7 anos de idade eu sofri abuso sexual, que se perpetuou até a adolescência, até o momento em que consegui nomear aquilo como errado, como violência, como crime.
Guardei essa história comigo por décadas, como quem tranca um quarto e joga a chave fora… até que os efeitos colaterais do trauma batessem à porta com juros e correção monetária. Vieram remédios e mais remédios, tentativas sucessivas de conter uma dor invisível, mas devastadora. Tem dias em que eu sento em frente à tela em branco do computador e o branco da tela simplesmente se teletransporta para a minha mente: nada sai, nada flui, nada lacra. A criatividade que antes era um verdadeiro parque de diversões vira, em certos momentos, uma cidade fantasma, vazia, ecoando memórias que eu preferia não revisitar.
É difícil, foi muito difícil escrever este texto. Talvez por isso eu tenha ido além da conta, transformando este material num verdadeiro dossiê da vida real; um documento que eu não me orgulho de ler, mas que sinto que preciso escrever. Porque, se essa teia de abusos existe, ela também passa por histórias como a minha. E hoje, aqui, eu escolho não me calar.
É desse lugar… de sobrevivente, jornalista e testemunha; que eu escrevo este dossiê sobre os abusos na moda brasileira.
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Há dias em que a moda quer brincar de sonho, desfile, brilho, feed, beleza, campanha de perfume com texto pseudo-filosófico sobre “ser quem você é”. E há dias (tipo hoje) em que a moda precisa sentar na cadeira fria da delegacia, encarar páginas e páginas de depoimentos, ouvir áudios com voz trêmula, ler relatos de meninos com fome dividindo colchão em república e entender, sem filtro e sem gloss, que parte desse “sonho” foi construída em cima de silêncio, medo e abuso. Ui ui ui, querides, hoje não é dia de look do dia. Hoje é dia de autópsia ética. O babado é certo.
A edição de dezembro da revista piauí chega às bancas com a reportagem “Teia de abusos”, do brilhante jornalista João Batista Jr., que passou quatro meses ouvindo modelos, bookers, agentes, governantas de república e advogados para desenhar um quadro que, honestamente, a indústria brasileira vinha se esforçando para varrer pra debaixo do tapete. No centro da narrativa, dois nomes conhecidos de quem acompanha moda no país: o agente de modelos Anderson Meira Medeiros, mais conhecido como Anderson Meyer, e o maquiador Marcos Costa, figura onipresente em capas, desfiles e campanhas, por três décadas ligado à Natura. Segundo a reportagem, ao menos 22 modelos homens acusam Meyer de assédio sexual, sendo um deles menor de idade na época dos fatos, enquanto seis modelos relatam ter sido assediados por Costa, em circunstâncias que se repetem com uma precisão perturbadora. Não estamos falando de “boato de backstage”, honey Lee. Estamos falando de inquérito policial em andamento, com gente prestando depoimento na 5ª Delegacia de Polícia de São Paulo, áudios, prints e um Ministério Público já acionado. Essa situação escancara os abusos e assédio sexual na moda brasileira.
Antes de qualquer coisa, vamos deixar cristalino como pele bem preparada: todas as pessoas citadas têm direito à ampla defesa, ao contraditório e à presunção de inocência. O que este texto faz é informar, com lupa quase cirúrgica, uma reportagem jornalística extensa, cruzar com décadas de escândalos internacionais na moda e, a partir daí, discutir estrutura, engrenagem, brechas e responsabilidades. Não é tribunal; é diagnóstico. A diferença é sutil, mas essencial. A Justiça dirá o que é crime. A gente, aqui, precisa dizer o que é inaceitável… Atura ou surta, bebê.
Os relatos coletados revelam uma cultura de silêncio e medo que permeia o setor, refletindo os abusos e assédio sexual na moda brasileira de forma alarmante.

O caso: da promessa de carreira ao quarto com tranca quebrada
Abusos e assédio sexual na moda brasileira: uma sombra persistente
A matéria da piauí abre como roteiro de filme brasileiro de baixo orçamento tentando se vender como “história de superação” de tarde chuvosa. Um shopping em Natal, um concurso de modelos promovido pela Tráfego Models, a maior agência do Nordeste, jovenzinho de 17 anos, 1,88 de altura, pele morena, olhos verdes, dentes alvíssimos, aquele pacote completo que o mercado ama transformar em commodity de passarela. É ali que Clemerson de Souza cruza pela primeira vez com Anderson Meyer, então representante da agência paulistana Another, patrocinadora do evento.
Ele não chega a ser finalista, mas, como em tantos contos de fadas tortos da moda, é justamente o “descartado” que recebe a promessa. Meyer o aborda depois do concurso, fala em potencial, book, São Paulo, república de modelos, ajuda de custo, grandes marcas. No script tradicional, isso se chamaria “oportunidade”. Aqui, é o prólogo do pesadelo, mon amour.
A reportagem reconstrói, com riqueza de detalhes, o que acontece quando um menor de idade, em situação familiar fragilizada, pede para antecipar a viagem porque não aguenta mais a violência em casa. E o que acontece é, resumindo de forma nada elegante, um desfile de irresponsabilidades: Clemerson embarca sozinho, sem autorização formal dos responsáveis, sem que a agência nordestina seja avisada, sem que haja um adulto legalmente encarregado da sua tutela na cidade de destino. Em vez de república de modelos, ele é levado diretamente para o apartamento de Meyer, na virada do Ano Novo.
Roupas novas, suposto clima de festa, padrasto de São Paulo que agora é agente, padrinho, benfeitor, tudo misturado numa sopa afetivo-profissional que já seria complexa para adulto com terapia em dia… imagina para um adolescente que acabou de sair de casa fugindo de agressão!?
O que Clemerson relata à piauí é perturbador: quarto de hóspedes com porta sem tranca, gente do mercado da moda entrando e saindo da casa, viagem para Santos, “simpatia” de Ano Novo ensinada por um produtor; bater o pênis três vezes na água do mar para atrair sorte…, convite para dormir na cama do agente, clima de sedução disfarçado de “carinho” e, finalmente, a cena em que, já de volta ao apartamento, ele acorda de madrugada com Meyer ajoelhado na cama, de cueca tipo jockstrap, com lubrificante à mão, televisão ligada em filme pornô e a mão do agente escorregando pela sua coxa em direção à virilha.
O menino reage, grita, confronta. Como resposta, ouve a “proposta” de que poderiam ser namorados. Ele lembra ao homem de 39 anos que veio a São Paulo para trabalhar, não para namorar com ninguém… Meu Deus.
Depois desse episódio, as coisas não viram caso de polícia… ainda. Viram o que o sistema sabe fazer de melhor quando uma vítima não cede: retaliação sutil. Meyer paga o book, instala o jovem em república, mas passa a dizer que “não tem tesão de vender” aquele modelo. O apoio financeiro some, os castings minguam, o sonho de São Paulo se transforma em bico de bartender num bar onde o proprietário se recusa a pagar a comissão combinada, e Clemerson volta para Natal com a passagem paga graças a um empréstimo da namorada.
A teia de abuso, aqui, não é só sexual, honey… É econômica, emocional, simbólica. Ela se alimenta da vulnerabilidade de um garoto que não tem sobrenome de família tradicional, não tem pai empresário, não tem reserva de emergência. Tem apenas um corpo desejado pelo mercado e muito medo de falar.
E esse é apenas um fio da história. Ui ui ui.

A engrenagem: prints, áudios, “caminho fácil” e o mito do favor
O que transforma casos isolados em “teia” é quando as histórias começam a repetir padrões com a insistência de trilha de desfile. Na apuração da piauí, um personagem surge como espécie de ombudsman involuntário desse universo masculino da moda: o modelo D.C., veterano, pai de três meninas, que vira o ouvido seguro para os desabafos dos mais jovens.
É para ele que, em 2024, um rapaz de 20 anos conta que, ao fazer fotos no estúdio da Mega, foi abordado por Meyer para tirar imagens “mais sensuais”, apesar da regra da casa proibir nudez naquele espaço. É com ele que outros meninos compartilham conversas de WhatsApp que, vistas em sequência, desmontam qualquer narrativa de “flerte inocente”, “brincadeira” ou “mal-entendido”.
As mensagens, segundo a reportagem, têm de tudo: apelidos sexualizados, comentários explícitos sobre genitália, convites para ser “amante secreta” de parente hétero, ofertas de ajuda financeira condicionadas à intimidade sexual. Em alguns diálogos, o agente expõe de forma crua o que chama de dois caminhos: o difícil, de muita luta, e o “fácil”, que passaria por favores sexuais em troca de oportunidades. Em um dos relatos, o jovem ouve que, se quiser “chegar lá”, talvez precise “comer viado”, porque “você é um pedaço de carne”. Isso não é escorregão de linguagem; é método. É a fala de quem sabe exatamente onde está o centro de vulnerabilidade do outro: na falta de grana, na vontade de ascender socialmente, na fantasia de que uma campanha internacional resolve a vida da família inteira. Tô ligado…
Danilo Sanchez, o booker que recebe D.C. na sua sala, é o ponto de inflexão dessa trama. Ele decide ouvir, gravar, checar, cruzar relatos, falar com ex-colegas de Meyer na Another e na Oxygen, procurar a governanta da república de modelos, C.E.M.S., que conhece os bastidores como poucas pessoas. Em questão de dias, Sanchez acumula pelo menos 18 depoimentos de modelos, ex-modelos e profissionais do mercado descrevendo situações semelhantes: propostas sexualizadas sob capa de “ajuda”, promessas de pagamento de aluguel e passagens em troca de intimidade, manipulação emocional, convites para dormir em casas de agentes, convites para festas onde os limites entre profissional e íntimo evaporam.
É aí que a história sai do sussurro e entra no megafone. Sanchez procura o RH da Mega. Antes, tenta conversar com o próprio Meyer, grava uma conversa de 12 minutos na qual o agente admite ter sustentado vários meninos, dado dinheiro para alguns, ajudado outros a pagar aluguel, mas nega veementemente ter coagido alguém ao sexo. Essa gravação, mais tarde, vira mensagem de áudio enviada a mais de duzentos modelos da agência, acompanhada de um post no Instagram com o título “O mercado da moda é sério”, em que Danilo fala de uma “minoria medíocre” no meio dessa turma de criativos apaixonados por arte e imagem, e lembra um óbvio que parece ter sido esquecido: sem modelos, agência é só parede… Abalou Bangu e adjacências!
A reação de Meyer é típica de quem sente que está perdendo o controle da narrativa: ele não apenas nega as acusações como entra com ação cível e representação criminal contra Sanchez e D.C., pedindo indenização e até prisão preventiva, alegando linchamento moral e danos irreparáveis à própria imagem. É esse contra-ataque que empurra o caso para o Ministério Público, que por sua vez remete tudo para a 5ª Delegacia de Polícia. A teia, que até então se desenrolava em DMs, grupos de WhatsApp e cochichos de backstage, vira processo, inquérito, número de protocolo, depoimento formal.
E aí, darling, não tem mais como fingir que nada aconteceu. O babado ganha CPF, carimbo e prazo.

A outra ponta da linha: Marcos Costa, a casa, o pornô, a cueca asa-delta
Enquanto Danilo Sanchez mergulha nas denúncias contra Meyer, outro nome aparece nos relatos, repetidamente, como notificação insistente de app: Marcos Costa. Não qualquer maquiador, mas um dos mais conhecidos do país, rosto altamente associado à Natura, presença constante em desfiles importantes, referência de beleza editorial.
A governanta C.E.M.S. conta que viu, mais de uma vez, modelos voltando estranhíssimos de “testes” na casa de Costa, dizendo que a televisão estava ligada num pornô “para ajudar na ereção” e que precisavam posar de cueca cavada, com o maquiador aparando pelos pubianos com barbeador. Em depoimento à polícia, um modelo narra a sequência quase cinematográfica: ele é enviado por Meyer, em 2019, ainda funcionário da Another, para um teste supostamente em nome da Natura; ao chegar, percebe que não há produtor, fotógrafo, figurinista, ninguém… só Costa no apartamento.
O maquiador o conduz para uma “sala de reunião” que, na prática, é um quarto de hóspedes, liga o filme pornô, pede que ele vista uma cueca asa-delta na sua frente, pega o barbeador e, a pretexto de aparar pelos, se abaixa em posição que simula sexo oral. O rapaz recua, diz que não é “esse tipo de pessoa”, ameaça ir embora; Costa se levanta, lhe entrega um óleo de cabelo da Natura de presente, aquele mimo que tenta dourar a situação, e o modelo entende o recado não dito: aquilo não era casting, era tentativa de abuso fantasiada de oportunidade.
A piauí relata seis depoimentos de modelos que contam histórias semelhantes envolvendo Costa: convites via rede social, promessa de testes ligados a marcas grandes, sessões em sua casa com TV ligada em pornô, nudez parcial, contato físico invasivo, propostas de sexo, cachês baixos sem detalhes claros de job, trabalhos que “caem” misteriosamente depois do teste, fotos nunca entregues.
Quando procurada pela revista, a Natura é taxativa: seus castings são feitos em estúdios, com equipe, e nunca em casa de profissionais. A empresa suspende o contrato com o maquiador imediatamente após o primeiro contato da reportagem e, posteriormente, rompe o vínculo de vez. Atitude rápida, mas reveladora: se é tão óbvio que casting não se faz em apartamento particular, como é que esse tipo de situação circulou tanto tempo no subsolo do mercado sem estourar?
O que se desenha ali é mais do que coincidência de modus operandi. É a sugestão, feita por depoentes e pontuada por João Batista Jr., de uma operação articulada, em que Meyer funcionaria como recrutador e encaminhador de rapazes para os testes “privados” de Costa, com o nome da Natura servindo de verniz de legitimidade. Se a polícia vai ou não enquadrar isso como associação, é trabalho da polícia. Do ponto de vista da ética profissional, contudo, a sensação é de estar diante de uma parceria tóxica que transforma carreiras em moeda de troca sexual. Drama pesado de bastidor, não fábula de editorial.

O silêncio: quem sabia, quem fingiu não ouvir, quem esperou o escândalo estourar
Uma das partes mais dolorosas de qualquer investigação de abuso é o capítulo invisível dos que sabiam e ficaram quietos. A matéria sugere que, no circuito da moda, havia um burburinho antigo sobre comportamentos “estranhos” tanto de Meyer quanto de Costa. Modelos trocavam mensagens entre si avisando para não ir sozinho ao apartamento de fulano, bookers davam risada desconfortável quando o nome de ciclano surgia, sempre surgia uma amiga, um amigo, um colega que já tinha “passado uma situação estranha” e aconselhava a ficar esperto.
Quando a Mega incorpora a Another e traz Anderson Meyer para dentro da maior agência de modelos do país, não é que ninguém jamais tivesse ouvido nada. É que, como em tantos outros setores, o mercado escolhe focar na performance profissional, no book pesado, no networking internacional, e varrer o resto para debaixo do tapete… até que o tapete comece a cheirar mal demais.
Mesmo após a explosão interna do caso, Marcos Costa continua sendo contratado para desfiles importantes, como a coleção de Ronaldo Fraga, e só perde o posto na Natura quando uma investigação externa bate à porta com perguntas objetivas e prazos de resposta… É Babado!
Não é coincidência que o empurrão para que tudo viesse à tona tenha vindo de dentro, a partir da combinação improvável entre um modelo veterano empático, um booker disposto a queimar cartucho e uma governanta de república com coragem de falar. Não temos um “sistema de compliance” abstrato que resolveu funcionar. Temos pessoas, com consciência individual, que decidiram romper o pacto de silêncio.
E isso, por mais bonito que pareça, é também prova de falha estrutural: se a proteção de jovens depende da boa vontade de indivíduos isolados, o sistema como um todo é frágil, casca de bala só na aparência. O risco continua ali, esperando a próxima vítima.

A teia histórica: da Vila Olímpia a Paris, passando por Nova York, Londres e pelo #MeToo
Seria tentador; para quem gosta de acreditar em excepcionalismos brasileiros; tratar o caso Meyer–Costa como aberração local, fruto de um mercado “atrasado”, coisa que se resolve com dois workshops de assédio moral e sexual e uma consultoria de ESG com coffee break vegano. Vamos combinar que não é bem assim, darling.
Lá fora, a lista de nomes envolvidos em denúncias graves é extensa e dolorosamente conhecida. Gérald Marie, ex-chefão da Elite Model Management em Paris, foi acusado por pelo menos 15 a 16 mulheres de estupro e agressão sexual, em casos que se estendem desde os anos 1980, muitos envolvendo modelos adolescentes enviadas sozinhas para a Europa. O escândalo levou a uma investigação criminal na França, que acabou arquivada em 2023 por prescrição, sem inocentar o executivo… um daqueles momentos em que a letra fria da lei diz “não dá mais tempo” enquanto a memória das vítimas segue em carne viva.
Em 2018, o New York Times publicou um arrasa-quarteirão com denúncias de 13 homens contra o fotógrafo peruano Mario Testino e mais de 15 contra o fotógrafo Bruce Weber, detalhando relatos de toques não consentidos, masturbação, nudez forçada, “exercícios de respiração” que terminavam em abuso em sessões de fotos e castings. Anna Wintour respondeu em editorial à altura, admitindo que a própria Condé Nast precisava olhar para dentro e rever protocolos de proteção; num raro momento em que a rainha da moda reconhece publicamente que o problema não está apenas “lá fora”, mas “aqui em casa”.
No caso de Terry Richardson, o fotógrafo que se autodefine como “pervertido” desde sempre, as acusações de coerção sexual, humilhações em set e abuso de poder circulavam desde o começo dos anos 2000, mas só ganharam consequência institucional real quando, em 2017, grandes grupos editoriais como Condé Nast e Hearst, e marcas como Valentino e Bulgari, anunciaram que não trabalhariam mais com ele, cortando campanhas, matando editoriais já produzidos e proibindo o uso de suas imagens nas revistas do grupo.
Percebe o padrão, mon amour? Homem em posição de poder num mercado baseado na imagem. Jovem em situação de vulnerabilidade econômica e simbólica. Promessas de carreira, sessões privadas, nudez normalizada como “parte natural do trabalho”. Fronteiras borradas entre sensualidade estética e exploração sexual. Silêncio institucional até que a pressão externa se torne insustentável.
Troque as ruas de Paris pela Avenida Paulista, o loft no SoHo por um apê em bairro nobre de São Paulo, os sobrenomes glamourosos franceses por nomes bem brasileiros, e você está olhando, essencialmente, para a mesma engrenagem. Atura ou surta, bebê.

As falhas: quando o compliance vira peça de marketing e o adolescente vira risco jurídico ambulante
Nos últimos anos, agências e grandes marcas começaram a falar muito em compliance, canal de denúncia, treinamento de liderança, cartilha anticorrupção, selo de diversidade, código de conduta. Fica lindo no PDF, rende release, garante manchete positiva sobre “empresa que se reinventa após o #MeToo (movimento viral contra o assédio e agressão sexual). O problema é quando tudo isso existe no papel, mas a prática continua se apoiando na velha lógica do “vamos resolver internamente, sem escândalo, para não prejudicar a marca”.
O caso relatado pela piauí acontece, em boa parte, já nessa era “compliance friendly”. Meyer entra na Mega depois que várias agências brasileiras implementaram canais de denúncia e regras mais rígidas para trabalhos com menores. Mesmo assim, um modelo de 20 anos só consegue relatar o que viveu porque encontra um interlocutor empático, não porque o sistema o acolheu.
Mesmo assim, um menor de 17 anos consegue tomar um avião de um estado para outro, sozinho, sem autorização expressa, para ficar hospedado na casa de um agente. Mesmo assim, castings supostamente ligados a uma gigante de cosméticos são realizados na casa de um maquiador, sem qualquer acompanhamento institucional, ao arrepio das próprias diretrizes da marca. Tá na Disney?
Quando a Natura afirma que seus castings nunca ocorrem em residências particulares e suspende o contrato de Marcos Costa assim que é questionada pela imprensa, ela não está apenas se protegendo de responsabilidade legal. Está, involuntariamente, deixando claro que o sistema deixou espaço para alguém usar o nome da empresa como biombo de legitimidade, sem que qualquer mecanismo de checagem tivesse barrado essa apropriação antes da denúncia bater no papel.
O mesmo vale para concursos regionais e parcerias entre agências de capitais e scouts de interior. Se um jurado de concurso patrocinado por uma grande agência consegue abordar um candidato que não foi finalista, manter contato direto, prometer carreira em outra cidade, comprar passagem, trazer o menino sem notificar a agência local nem os responsáveis, é porque o protocolo está frouxo. Não é só má-fé isolada: é desenho institucional que permite esse tipo de atalho.
E tem o ponto jurídico, aquele que bate na porta quando o mundo real já desandou: menor de idade é protegido por legislação específica, com regras claras para trabalho artístico, deslocamento, hospedagem e remuneração. O caso de Clemerson, levado a São Paulo sem tranca na porta, sem responsável legal, sem qualquer documentação formal, deveria ser lido não apenas como drama individual, mas como alerta de que o sistema da moda está operando em desacordo com normas básicas de proteção à infância e à adolescência. Aí, não é só babado… é risco jurídico na veia.

As zonas cinzentas: quando o “tudo é sensual” vira desculpa para tudo
A moda vende corpo, desejo, pele, erotismo. Isso não é novidade nem pecado. O problema começa quando o discurso da sensualidade vira desculpa para qualquer coisa.
“Ah, mas em ensaio de underwear é normal ficar de cueca.” Sim, é normal quando há briefing claro, equipe presente, contrato assinado, cachê definido, produtor, stylist, fotógrafo, maquiador, todo mundo atuando dentro de parâmetros profissionais. Não é normal quando o “casting” acontece na casa de alguém, com TV ligada num pornô, sem equipe, sem contrato e com barbeador se aproximando da sua virilha na base do “deixa eu dar uma ajeitadinha”.
Da mesma forma, “amizade” entre agente e modelo é palavra perigosíssima quando escorrega para “dorme aqui em casa hoje”, “vem tomar banho na minha suíte”, “vamos pra praia, eu te ensino uma simpatia”, “tô pagando teu aluguel, me dá atenção”, “faço tudo por você, você não faz nada por mim”. A zona cinzenta entre relação de confiança e dependência afetivo-financeira é o terreno perfeito para manipulação.
E o fato de muitos modelos serem adultos, pelo menos no RG, não significa que estejam em condição de igualdade de poder com quem controla suas oportunidades profissionais. Há abismo, não equilíbrio. E é nesse vácuo que o abuso faz morada.
Outra zona cinzenta importante é o recorte de gênero e orientação sexual. Muitos dos casos brasileiros e internacionais envolvem homens gays assediando modelos homens, alguns heterossexuais. Isso é prato cheio para discursos homofóbicos reduzirem o problema à “promiscuidade dos viados da moda”. A gente precisa ser muito claro: o que está em jogo aqui não é orientação sexual, é abuso de poder.
Gérald Marie não era homem gay assediando meninos; era executivo hétero acusado de estuprar modelos mulheres. Mario Testino e Bruce Weber foram acusados por homens, sim, mas o denominador comum é a assimetria brutal entre quem manda e quem depende daquele job para pagar o aluguel. Terry Richardson construiu carreira em cima de erotismo desinibido e foi acusado de cruzar a linha do consentimento com mulheres e homens em seus sets.
Homofobia não resolve nada; só troca o alvo e mantém a estrutura intocada. O foco tem de ser responsabilidade, consentimento e ética profissional; para todas as orientações, identidades e corpos. Babado é encarar o poder, não demonizar desejo.

O colapso ético: quando o medo muda de lado
A grande mudança dos últimos anos, impulsionada pelo #MeToo e por uma geração menos disposta a engolir sapo, é a inversão gradual do eixo do medo. Antes, era o modelo que tinha medo: medo de ser taxado de problemático, medo de perder job, medo de ser visto como ingrato, medo de não ser lembrado para a próxima temporada. Hoje, aos poucos, é o profissional em posição de poder que começa a sentir medo; medo de print, medo de áudio vazado, medo de processo, medo de marca rompendo contrato, medo de ver seu nome no Google eternamente colado a “assédio”.
Quando a Mega decide demitir Zeca Barreto, agente que sugeriu a “simpatia” de Ano Novo para Clemerson, afirmando que agentes não confraternizam com menores para evitar qualquer tipo de problema, é a instituição tentando reposicionar sua régua de aceitabilidade.
Quando a Natura suspende e depois rompe com Marcos Costa tão logo recebe questionamentos da imprensa, é o mesmo movimento: o medo de ser cúmplice, ainda que involuntário, pesa mais do que a conveniência de manter um nome forte no casting de campanhas.
Isso é bom? É. É suficiente? Nem de longe. Um mercado ético não pode depender apenas do medo jurídico e reputacional. Ele precisa de convicção. Precisa de cultura. Precisa de mecanismos que funcionem antes do escândalo explodir, não depois.
Precisa de espaços seguros em que um garoto recém-chegado da periferia possa dizer “aconteceu isso comigo” sem ouvir em resposta: “melhor não mexer nisso agora, pode prejudicar sua carreira”. Porque aí, honey, quem está sendo protegido não é o sonho… é o agressor.

A reinvenção necessária: do dossiê ao compromisso – o que a moda brasileira precisa fazer ontem
O House of Models sempre acreditou que jornalismo de moda não é só medir barra de saia e comentar trend de sneaker. É falar de trabalho, corpo, dinheiro, saúde mental, legislação, relações de poder, quem lucra com o quê. Se a gente quer uma moda brasileira minimamente adulta, a hora é agora de pegar esse caso revelado pela piauí como espelho e perguntar: o que vamos fazer diferente daqui pra frente?
Não existe solução mágica, mas existe direção. Agências precisam transformar suas “políticas de proteção a modelos” em documentos vivos, aplicados, com treinamento real, canal de denúncia independente, protocolo claro para casos de assédio e abuso, transparência sobre o que foi feito com cada queixa. Precisam deixar registrado, com tinta indelével, que é terminantemente proibido agente ou booker convidar menor de idade para dormir em casa, levá-lo para viagem sem responsável, fazer casting sem equipe, negociar “caminho fácil” em troca de sexo.
Precisam se comprometer a romper contratos com qualquer profissional… interno ou parceiro; que viole esses princípios, mesmo que isso signifique perder um nome “forte” por um tempo. Atura ou surta, bebê. A reputação da casa vem antes do ego do gênio.
Marcas, por sua vez, não podem mais fingir que terceirizam completamente a responsabilidade para agências e produtores. Se um fotógrafo, maquiador, stylist ou diretor de casting atua regularmente em nome de uma empresa, essa empresa precisa saber como ele trabalha, onde faz teste, quem está presente, quais são as regras de conduta.
Tem que existir cláusula específica em contrato proibindo sessões privadas com modelos sem equipe, exigindo presença de representante da agência em trabalhos com menores, determinando que qualquer denúncia leve a apuração séria e, se necessário, ao corte de laços profissionais. Não dá para repetir o teatrinho internacional em que grupos gigantes levaram anos para cortar vínculos com fotógrafos denunciados, só agindo quando a pressão pública virou tsunami.
Concursos regionais e caça-talentos precisam se atualizar para ontem. Jurado não pode virar agente solo sem contrato; promessas de carreira precisam passar por canais institucionais; deslocamento de menores de um estado para outro para fins de trabalho tem de ser formalizado com autorização clara, acompanhamento de responsável ou tutor legal, registro em conselho de direitos quando necessário.
Governantas de república, motoristas, recepcionistas de agência, todo mundo que está na ponta do dia a dia precisa ser treinado para reconhecer sinais de abuso, saber a quem recorrer, ter proteção contra retaliação. Sem isso, todo discurso de “cuidado com nossos talentos” fica parecendo só post motivacional no Dia do Modelo…
E nós, imprensa especializada, influencers de moda, jornalistas, fotógrafos, stylists, precisamos parar de tratar qualquer denúncia como “climão de backstage” que estraga a festa. Precisamos usar nossas plataformas para educar famílias e aspirantes: produzir guias claros sobre o que é normal e o que nunca é aceitável num casting, ensinar a guardar conversas, registrar tudo por escrito, procurar apoio jurídico e psicológico quando necessário.
Precisamos também admitir que parte dessa cultura foi alimentada por décadas de glamourização da figura do “gênio excêntrico” que tudo pode; aquele stylist que berra com todo mundo, o fotógrafo que pede nudez e humilha quem recusa, o diretor de casting que faz piada sexual em fila de prova de roupa. Esses personagens não são “folclóricos”; são riscos. E o babado é assumir isso, não passar pano.

Entre a indignação e a esperança, o babado agora é outro
Talvez a maior lição desse caso seja a constatação de que a teia de abusos não é feita só de predadores explícitos. Ela é tecida, fio a fio, por cada riso cúmplice, cada “deixa disso”, cada “mas ele é tão importante”, cada “coitado, a carreira dele vai acabar se isso sair”, cada “não vamos expor o nome da marca agora”, cada “melhor esperar o inquérito acabar pra ver como será”.
A moda brasileira se acostumou a usar o corpo alheio como matéria-prima sem se perguntar, de verdade, quanto custa para aquele corpo estar ali. Chegou a hora da conta, mon amour.
Isso não significa demonizar todo mundo, cancelar geral, transformar o setor num campo de batalha paranoico onde ninguém toca em ninguém. Significa, pelo contrário, construir um ambiente em que desejo, sensualidade, beleza e trabalho possam coexistir sem que um lado precise sacrificar a própria dignidade para que o outro poste foto no backstage com legenda “meu novo protegido”.
Significa adotar, de forma madura, a mesma energia que usamos para brigar por casting diverso, por presença de corpos reais nas passarelas, por sustentabilidade, e aplicar na proteção de quem faz a moda acontecer.
Se o caso Anderson Meyer-Marcos Costa servir apenas para mais um ciclo de indignação nas redes, com notas de repúdio e silêncio constrangido no backstage, teremos perdido uma oportunidade histórica. Se, ao contrário, esse episódio virar marco, catalisador, ponto de virada; com agências reescrevendo protocolos, marcas assinando cartas públicas de compromisso, associações de modelos exigindo lugar à mesa, imprensa especializada cobrindo o tema com seriedade, não com medo; talvez, lá na frente, possamos olhar para trás e dizer: foi ali que a moda brasileira decidiu crescer.
Até lá, que fique registrado: a partir deste artigo, ninguém mais pode dizer que não sabia. O sonho da moda brasileira não pode continuar costurado com fios de silêncio e abuso. Ou a gente reescreve esse roteiro, ou o filme acaba em tragédia repetida.
E, convenhamos, honey Lee, a gente nasceu para final épico, não para drama cansado de sessão da tarde.
Foto: Unsplash
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