Por Fabio Lage – House of Models
Especial Casa de Criadores 57
Há desfiles que são bonitos, outros que são corretos e alguns que a gente esquece antes mesmo de sair do pavilhão. E há raríssimos momentos em que o primeiro passo de uma modelo na passarela parece virar a chave de um sistema inteiro. Foi isso que aconteceu quando Bella Nabeel, modelo trans indígena nordestina do casting da EGM – Elian Gallardo Model, abriu o desfile de Le Benites na Casa de Criadores 57 e, de quebra, inaugurou toda a temporada de moda do evento. Ui ui ui, mon amour, não é pouca coisa.
A cena é cinematográfica. Iluminação fria, passarela escura, o fundo azul em clima de performance. Antes mesmo da primeira pirueta dos bailarinos da Cisne Negro, entra ela, magra como uma linha de desenho, pele brilhando como quem acabou de escapar de um treino olímpico, top esportivo gráfico em preto e branco, shorts de tiras que voam em volta das pernas, faixa na cabeça, bota de salto que não tem medo de nada, honey Lee de Xique-Xique. É Bella quem abre o desfile, é Bella quem abre a temporada, é Bella quem crava ali um novo capítulo da moda brasileira com um corpo que carrega três palavrinhas que ainda assustam muita gente: trans, indígena, nordestina. Atura ou surta, bebê.
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Quem é Bella Nabeel, afinal
Antes de ser rosto de desfile, Bella Nabeel é história viva. No RG, ela atende por Isabella Nabeel da Costa dos Santos. O nome artístico nasceu dentro de casa, e isso diz muito sobre ela. No começo da transição, a avó, entendendo o que aquela neta estava se tornando, começou a chamá-la carinhosamente de Bella. Não era só apelido fofo. Era voto de confiança. Era um jeito simples e gigante de dizer eu te vejo. O nome pegou, colou na pele, subiu para as redes e hoje o mundo da moda a conhece como Bella Nabeel, uma dessas identidades que já nascem com cara de capa de revista.
Ela é natural de Juazeiro, Bahia, região em que o sol não costuma ter pena e a cultura pulsa mais forte que o ar condicionado de shopping. Na bagagem familiar, duas forças que estruturam o Brasil e, curiosamente, quase não aparecem de forma digna nas passarelas: de um lado, a ancestralidade do povo Pataxó, herdada pela linha materna; do outro, raízes afrodescendentes vindas da família paterna. A intersecção perfeita para uma biografia que, se dependesse do olhar hegemônico da moda, provavelmente nunca seria convidada para o baile.
Com oito anos de idade, a família muda para o interior de São Paulo. É ali que Bella cresce, estuda, trabalha e apanha da realidade de uma cidade pequena onde ser trans, ser indígena, ser diferente de qualquer padrão pasteurizado ainda é visto como afronta. Ela trabalha em um mercado de bairro, entre limpeza, reposição de produto em prateleira e caixa, enquanto sonha com passarela, editoriais, beauty, câmera, backstage. As pessoas ao redor não a respeitam como mulher e muito menos como futura modelo. A visão é curta, o preconceito é longo, mas a esperança é teimosa. O babado é esse.
No meio dessa dureza, existe um trio de apoio que faz toda a diferença. Mãe, avó e irmãs nunca duvidam do potencial da Bella. São elas que seguram a barra, que enxergam futuro onde a cidade só enxerga escândalo, que lembram à jovem baiana que, mesmo com o mundo dizendo não, o corpo dela nasceu para ocupar espaço. A moda ainda não sabe, mas está sendo gestada ali uma protagonista.

A decepção com agências e o encontro com Elian Gallardo
Como quase toda modelo brasileira que não nasceu em berço de elite, Bella pega a trilha das tentativas frustradas. Ela procura agências, manda fotos, faz testes, ouve um rosário de nãos e silêncios. Muita gente não enxergava potencial, outras até viam, mas não estavam dispostas a fazer o trabalho mais difícil: lapidar. Porque acreditar em modelo pronta é fácil. O desafio é apostar na matéria bruta e investir tempo, treino, formação. A indústria adora falar de diversidade, mas na hora de colocar dinheiro e energia em corpos que fogem do padrão, some mais rápido que tendência de microbolsa.
Em meio a esse desânimo, entra a internet como cupido de passarela. Uma amiga manda para Bella um vídeo da Liya Santos, também modelo trans do casting de Elian Gallardo, desfilando e crescendo no cenário. Aquilo acende uma luz. Se uma mulher trans estava ali, brilhando, alguém em São Paulo devia estar realmente abrindo portas em vez de só usar a palavra diversidade como hashtag vazia. Bella faz o que muita gente não tem coragem: investiga, estuda, stalkeia e encontra o nome que muda tudo, Elian Gallardo Model Management.
Ela manda mensagem, se apresenta, conta um pouco da história, envia fotos. Elian marca de vê-la pessoalmente. E aqui entra um dos pontos mais bonitos da narrativa. Ele não enxerga só um rosto fotogênico. Vê verdade, raiz, garra. Vê uma menina que saiu da cidade pequena, cruzou estados, encarou transfobia, juntou dinheiro trabalhando em mercado e mesmo assim chega a São Paulo com postura profissional, material preparado, vontade de aprender. Como o próprio Elian costuma dizer nos bastidores, modelos trans carregam algo que vai muito além de estética. Trazem coragem, história, identidade. No caso da Bella, ainda somam ancestralidade indígena e uma serenidade que não se compra, meu bem!
A partir daí, a EGM acolhe Bella. Não como quem coloca mais um nome em planilha, mas como quem aposta em projeto de longo prazo. Ninguém ali espera que ela esteja pronta. Pelo contrário. A certeza é justamente: ninguém nasce pronto, modelo se constrói. E construção exige treino, feedback, frustração, lapidação constante. Ela abraça o processo.

Dos treinos ao primeiro desfile: Adrinkras, de Isaa Silva
Pouco tempo depois de entrar na agência, Bella investe em um bom material de foto, porque sonho sem estratégia é só delírio. Com book novo embaixo do braço, cai no circuito de castings. Passa. E passa justamente para um desfile que parece escrito por alguma entidade do styling cósmico: a coleção Adinkras, da estilista Isa Silva, uma ode à representatividade, à ancestralidade e à presença de corpos dissidentes na passarela.
É o primeiro grande momento de Bella no mundo da moda e já chega carregado de significado. Ali ela entende, na prática, que existe lugar para modelos trans e que a passarela pode sim ser espaço de afirmação política. O trabalho com Isa Silva funciona como rito de passagem. Em paralelo, a rotina de treinos na EGM vai desarmando receios. Bella descobre que aquela timidez que carregava não era essência, era mecanismo de defesa. No interior onde cresceu, mostrar personalidade não era considerado certo. Na moda autoral, personalidade é tudo. Quebrar essa trava muda tudo.

A descoberta da própria ancestralidade como potência estética
Bella sempre soube que tinha sangue indígena. A Bahia é território de múltiplos povos originários e a família dela falava das raízes Pataxó. Mas a mesma sociedade que desrespeita corpos trans também apaga identidades indígenas, principalmente quando essas pessoas vivem em centros urbanos ou interiores não aldeados. Ancestralidade vira nota de rodapé, quando deveria ser título.
Ao entrar na agência, esse tema volta à tona com força. Elian, obcecado em trabalhar com histórias reais, enxerga na linhagem Pataxó de Bella uma camada que a moda raramente explora com respeito. Em vez de esconder, ele estimula que ela traga essa origem para a superfície, com sutileza e orgulho. A modelo, que antes não ligava ou até escondia essa parte de si com medo de que isso atrapalhasse a carreira, passa a vestir a própria história como acessório de luxo espiritual. Plumas, pinturas e detalhes simbólicos vão aparecendo em fotos de book e testes de beauté, sempre com cuidado para celebrar, não folclorizar.
É nesse encontro entre corpo trans, origem indígena e desejo de passarela que nasce a Bella que vemos hoje. Não é mais uma jovem tentando se encaixar em um padrão que nunca foi feito para ela. É uma artista modelo, como ela mesma se define, que transforma o próprio corpo em manifesto de continuidade de povos que o Brasil insiste em marginalizar.

Chegando à Casa de Criadores: o caminho até Le Benites
Depois de Adrinkras e de uma série de treinos que envolvem postura, andar, expressão, preparação emocional e resistência física, Bella vai ganhando segurança. A EGM é conhecida por levar seus talentos a espaços onde a moda brasileira se reinventa e questiona, e não existe palco melhor para isso do que a Casa de Criadores, semana de moda que há anos assume a função de laboratório de novas estéticas, linguagens e corpos.
No line-up da 57ª edição, um desfile chamava atenção: o de Le Benites, criado como uma performance em diálogo com a Cisne Negro Cia de Dança. O estilista, que tem biografia atravessada pela frustração de não ter seguido carreira de bailarino clássico por não se encaixar no padrão exigido, decidiu transformar essa memória em moda. A coleção gira em torno de atletismo, treino, corpo em movimento, sensualidade e disciplina. As peças parecem figurinos de balé contemporâneo passados por um filtro de academias urbanas e clubes underground. Há regatas cavadas, macacões colados, shorts e calças com elásticos esportivos, malhas que lembram segunda pele de atleta e detalhes que flertam com underwear fetichista.
Inicialmente, a ideia de Le Benites era trabalhar somente com bailarinos da Cisne Negro, sem modelos tradicionais. A passarela seria palco de dança, e não de desfile convencional. Eis que entra na história a figura do olheiro que não dorme: Elian Gallardo. Observando o avanço de Bella, seu domínio de passarela, a disciplina com que absorvia correções e o crescimento técnico e espiritual, Elian percebe que aquela mulher tem algo que encaixa perfeitamente no conceito da coleção. Não apenas no nível visual, mas no campo da narrativa: uma trans indígena nordestina que, através do corpo, ressignifica padrões de movimento e presença. Não existe casting mais alinhado.
Nos bastidores, Elian apresenta a ideia ao estilista e crava a frase que muda o rumo da apresentação. “Amigo, se você quer trabalhar com modelo trans de verdade e fazer algo inédito, eu tenho uma que vai te enlouquecer quando você conhecer.” A partir daí, o resto é quase inevitável. Le Benites vê Bella, entende no ato que ela carrega exatamente o tipo de força que sua coleção pede e decide não apenas colocá-la no desfile, mas entregarle a abertura do show… Mon amour, isso não é convite, é consagração babadeira.

A abertura histórica na Casa de Criadores 57
É difícil exagerar a importância do que acontece ali. A Casa de Criadores é a principal plataforma de novos criadores e de moda autoral do Brasil. É laboratório, é statement, é palco político. Abrir uma edição do evento significa se tornar a primeira imagem gravada na memória coletiva daquela temporada. Em termos de simbologia, é como ser o primeiro acorde de um concerto inteiro. Nada mais justo do que colocar nesse lugar alguém que já carrega, no corpo, a própria síntese de urgências brasileiras.
Quando Bella pisa na passarela com o look de abertura de Le Benites, o que se vê é uma espécie de testemunho vivo da capacidade da moda de reparar, ainda que simbolicamente, apagamentos históricos. Pela primeira vez, muitos espectadores veem uma mulher trans indígena nordestina abrir uma grande semana de moda brasileira. Para quem entende de casting, isso é um marco generoso, quase uma ruptura.

O look de Bella Nabeel para Le Benites
O look em si é um capítulo à parte. O top tem a pegada de um sports bra futurista, com tecido que parece misturar compressão técnica e leve transparência. As listras verticais em preto e branco criam um efeito óptico de velocidade e alongamento. No centro, um detalhe rígido faz as vezes de placa, quase como se uma armadura minimalista protegendo o peito da modelo. Traduzindo: é roupa esportiva, mas também é armadura emocional. Do jeito que a gente ama, honey.
Na parte de baixo, um microshort estruturado serve de base para longas tiras de tecido que descem pelas pernas. A cada passo, essas faixas deslizam e chicoteiam o ar, como se Bella fosse uma ginasta rítmica de outro planeta. O movimento do tecido dialoga com os bailarinos da Cisne Negro que surgem na sequência, criando um circuito visual entre dança e passarela. O styling se completa com uma faixa de cabeça no mesmo print, amarrando o visual de maneira quase tribal futurista, e botas pretas de salto fino que seguram a feminilidade afiada da composição.
O resultado é um look que não suaviza nada. Pelo contrário, evidencia músculos, ossos, linhas, fragilidades e forças. O corpo de Bella vira desenho em tempo real. A pele brilhante, quase suada, reforça a ideia de esforço físico, treino, disciplina. Não há espaço para passarela de faz de conta. Ali está uma atleta da própria história, uma bailarina sem palco clássico, uma guerreira Pataxó remixada em moda esportiva autoral. Quebra tudo, Bella.

Preparação, nervoso e naturalidade
Por trás dessa entrada impecável, existe um processo intenso de preparação. Bella destaca que os treinamentos frequentes da EGM foram fundamentais para que ela perdesse a timidez artificial, adquirisse postura, entendesse tempos de passarela e, principalmente, sentisse segurança para abrir o desfile. A acolhida de Le Benites também conta. Em vez de enxergá-la como token de diversidade, ele a trata como peça central da performance. Isso muda tudo, baby.
Ela admite que estava nervosa, e seria estranho se não estivesse, mas que, na hora, o corpo entrou em piloto automático de confiança. O nervoso virou foco. A dedicação dos treinos virou memória muscular. O discurso de representatividade se materializou em presença. A passarela deixa de ser um espaço hostil e se transforma na extensão natural do que ela sempre quis ser.

O que essa abertura significa para a moda brasileira
Em um país que ainda elimina vidas trans em números alarmantes e que continua empurrando povos indígenas para fora das conversas de poder, ver uma modelo trans indígena da Bahia abrir uma das semanas de moda mais importantes para novos criadores é gesto político. É sinal de transformação concreta dentro de um sistema historicamente elitista, eurocentrado e cisnormativo.
Para a indústria de modelos, Bella Nabeel representa um deslocamento de eixo. Em vez de olhar apenas para o eixo eixo Rio São Paulo e para os corpos brancos magros de classe média alta, a moda começa a olhar para uma geração de talentos que vem do interior, das bordas, dos contextos onde ser bonito nunca foi suficiente para garantir respeito. Bella mostra que é possível chegar lá, mas também deixa exposta a pergunta incômoda: quantas Bellas ficaram pelo caminho porque ninguém como Elian decidiu apostar nelas?
Para a Casa de Criadores, têla abrindo a temporada reafirma o compromisso do evento com a pluralidade não performativa. Não se trata apenas de colocar uma modelo trans num look em meio a cinquenta rostos iguais. Trata-se de entregar a ela o lugar de comando, o primeiro impacto, a missão de anunciar o tom da temporada. E o tom, desta vez, é claro: a moda brasileira que interessa é aquela que celebra multiplicidade, não a que insiste em replicar catálogo de marca de perfume dos anos 90… so last season!
Para Le Benites, a escolha de Bella como rosto de abertura sela um diálogo potente entre biografia pessoal do estilista e biografia da modelo. Ele, que foi barrado pelo padrão rígido da dança clássica, traduz esse trauma em uma coleção que abraça corpos improváveis, atletas de si mesmos, performers da própria identidade. Ela, que foi barrada por padrões igualmente rígidos da sociedade e das agências que não quiseram lapidá-la, devolve com presença e entrega um recado bem claro ao mercado. Não adianta chorar a diversidade perdida quando você mesmo fechou a porta anos atrás.

O futuro: artista modelo em expansão
Bella nunca quis ser só mais um rosto na prateleira fashion tupiniquim. Desde criança, ela expressava sua arte com desenhos, pinturas e croquis de moda. Chegou a imaginar que seria estilista. Tem pastas e mais pastas de criações, coleções inteiras desenhadas. O detalhe é que, ao visualizar cada look, ela se enxergava usando as peças, não apenas criando para outras modelos. Em algum momento, caiu a ficha: além de artista desenhista, ela é artista modelo. O corpo é a tela, a passarela é o ateliê, o mundo é o público.
Os planos de futuro seguem na direção que a gente espera de alguém que já nasce com horizonte ampliado. Bella quer crescer na carreira, viajar, desfilar em semanas de moda, protagonizar editoriais, campanhas e capas que levem junto essa representação que ela carrega com tanta responsabilidade. Ela quer ver mais pessoas trans, mais pessoas indígenas, mais nordestinos em lugares de destaque. Quer que sua história sirva de espelho e de catapulta.
Elian, como bom estrategista de casting, enxerga nela uma combinação rara de elementos: trans, racializada, indígena, disciplinada, esforçada e extremamente artística. Não é só uma modelo que cabe numa tendência. É uma profissional que atravessa gerações. Para ele, se Bella se mantiver firme, dedicada, com os pés no chão e a cabeça na constância, não há limite para o alcance da carreira. E aqui, sinceramente, eu assino embaixo. O mundo está lotado de rostos bonitos. O que falta é gente com verdade. E isso Bella tem de sobra.

Por que Bella Nabeel importa agora
Em tempos de feeds saturados de campanhas que adotam diversidade como se fosse filtro de aplicativo, Bella Nabeel surge como uma das figuras mais interessantes da nova geração de modelos brasileiras. Ela não é tendência passageira. É síntese de temas urgentes: identidade de gênero, ancestralidade indígena, regionalidade nordestina, recorte de classe, deslocamento geográfico e a eterna disputa pelo direito de existir em paz.
O fato de ser representada por uma agência como a EGM – Elian Gallardo Model, que efetivamente investe em corpos dissidentes, só reforça a potência dessa trajetória. O fato de abrir o desfile de Le Benites na Casa de Criadores 57 transforma essa potência em registro histórico. O fato de tudo isso acontecer com alguém que já ouviu tantos nãos de agências que não quiseram fazer o trabalho duro de formação é praticamente um tapa elegante na cara da preguiça estrutural do mercado.
No meio desse turbilhão, Bella segue fazendo o que sempre fez, desde os tempos de mercado no interior: trabalhando, estudando, desenhando, treinando, se alinhando com quem acredita nela. A diferença é que agora, quando ela entra na passarela, não é só a família que vê futuro. É a moda inteira.
Mon amour, se você ainda não aprendeu o nome, é melhor decorar.
Porque a temporada abriu com ela.
E tudo indica que por muito tempo vamos viver na era Bella Nabeel.
Foto: Ag. Fotosite
Foto: Elian Gallardo Model
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