SPFW N60: quando a passarela vira biografia, e os corpos viram manifesto

A energia começou no silêncio. Aquele silêncio tenso que antecede o primeiro passo e que, de alguma forma, já diz tudo. A São Paulo Fashion Week N60 não pediu licença, entrou na história como quem acende um fósforo num barril de gasolina. O ar cheirava a urgência, a grito contido, a sonho prestes a explodir. Os flashes sabiam. A plateia sabia. E quem estava prestes a cruzar a passarela… também.
O Brasil veio inteiro. Com sotaque, com suor, com a cara lavada e o deboche no olhar. Veio com histórias que não cabem em casting call e com trajetórias que desafiam qualquer régua de glamour importado. Veio sem precisar provar que tem lugar. Já tem. Já é.
Mon amour, o babado não foi sutil. Foi daqueles que você sente no estômago, que arrepia a nuca e arranca sorrisos enviesados de quem sabe que está assistindo a um capítulo importante. É moda, mas também é cutucão. É desfile, mas também é manifesto. E se alguém piscou, perdeu o melhor close.

Por Fabio LageHouse of Models

Querides, a temporada não começou com um tecido cortado. Começou com uma pulsação. Uma energia ancestral, queer, periférica e poderosa que atravessou a passarela como quem atravessa o tempo. Trinta anos de São Paulo Fashion Week e, sinceramente, Ui ui ui!… nunca foi tão bonito ver o Brasil real ocupando o epicentro da moda brasileira. Não era sobre “looks”, honey Lee da Silva. Era sobre vidas, sonhos e pertencimento.

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De repente, cada entrada deixava de ser apenas um desfile e virava um capítulo vivo de uma biografia coletiva. Era suor de garçom transformado em glamour, era o sonho pulsante de uma menina do Maranhão cruzando oceanos de impossibilidades, era voz indígena ecoando do ventre da floresta até o concreto selvagem de São Paulo, era corpo queer desarmando binarismos com a elegância de quem não precisa pedir permissão para existir. A São Paulo Fashion Week N60 não só celebra 30 anos de história, baby. Ela esfrega na cara do tempo que a moda, no Brasil, respira com sotaque, com ancestralidade, com cor, com desejo e com coragem… Atura ou surta, bebê.

Expedito Carlos: do bandejão para a passarela

Foi na apresentação de João Pimenta (do qual não fomos convidados) que Expedito Carlos, de 22 anos, estreou rasgando o ar com presença de quem nasceu para ocupar o palco. Mas a verdade é que antes de brilhar no maior evento de moda do país, ele equilibrava bandejas como garçom em Maceió. Sim, mon amour, garçom. E foi ali, servindo uma mesa qualquer, que um olheiro enxergou um diamante cru.

Motoboy, ambulante, servente de pedreiro, vendedor. A trajetória de Expedito é Brasil raiz, sem filtro. Em 2025, ele desfilou pela primeira vez no DFB e agora pisa firme na SPFW com o selo WAY Model, abrindo caminho em marcas como Handred, Foz e Rafael Caetano.

“Quero representar quem vem da mesma realidade que eu. Sei o que é ser jovem negro de periferia e não desistir”, diz Expedito.

Naquele instante, não era só ele desfilando. Era a quebrada toda atravessando a passarela com a cabeça erguida. E isso, darling, tem mais potência que qualquer tecido couture.

Nico Frazão: da sala de aula ao legado de Gisele

Aos 16 anos, Nico Frazão carrega um detalhe nada básico no currículo: foi revelada no mesmo concurso que apresentou Gisele Bündchen ao mundo; o lendário The Look of The Year. Nascida em São Luís, no Maranhão, Nico deixou a cidade natal para viver o que tantas meninas sonham ao se espelhar em supermodels: o primeiro grande passo na semana de moda mais importante do Brasil.

Gloria Coelho – SPFW N60 – Foto: Gustavo Scatena – @agfotosite

Representada pela Joy Management, agência que lapidou nomes como Lais Ribeiro, Nico debutou na passarela de Gloria Coelho (que também não fomos convidados) com a serenidade de quem entende que um simples caminhar pode ecoar como trovão. E sim, o trovão ecoou. Presença garantida em outras apresentações, incluindo Cria Costura, Nico é uma revelação que é símbolo de uma nova geração que já chega sem pedir licença, apenas desfilando e lacrando.

Ui ui ui… o babado é forte.

Isabel Alves: a voz da Bahia com o coração em São Paulo

Filha de uma trabalhadora doméstica e de um pai com deficiência visual, Isabel Alves, de 19 anos, nasceu em Ibipitanga, Bahia. Estudou fonoaudiologia, trabalhou CLT e sonhou grande. Tudo mudou quando foi abordada por um olheiro enquanto comia pizza com uma amiga. O que era casualidade virou destino: ela trancou a faculdade, pediu demissão e embarcou em uma jornada que a levou direto para o line-up da SPFW.

Com o apoio da WAY Model, Isabel desfilou para Flavia Aranha, Gloria Coelho e desfilará para SAU, Fauve e Cria Costura.

“Sempre quis retribuir tudo que meus pais fizeram por mim”, diz Isabel, com uma força que não se ensina.

Na passarela, Isabel não veste apenas roupa. Veste história, luta e gratidão. E isso, honey Lee, nenhuma tendência supera.

Fernando Casablancas: um corpo queer contra o binário

Primeiro modelo a pisar na passarela desta edição histórica, Fernando Casablancas abriu a temporada na apresentação de João Pimenta, na Biblioteca Mário de Andrade. Nome com pedigree fashion; filho do lendário empresário John Casablancas; Fernando usa seu corpo como plataforma de resistência, desarmando sistemas binários e questionando a própria noção de gênero na moda.

Em menos de um ano, desfilou para Balmain, Bottega Veneta, Dsquared2 e Ludovic de Saint Sernin, estrelou editoriais para Vogue, I-D e Arena Hommes Plus, e foi clicado por lendas como Mert & Marcus e Luigi & Iango.

“Comecei a aceitar minha estranheza, minha fluidez e partes de mim que nunca pensei que aceitaria”, disse, num depoimento que atravessa gerações.

Na SPFW, Fernando fez da passarela um palco político. E que performance, darling.

Emilly Nunes: a força indígena que atravessa oceanos

Diretamente da comunidade Aruan, no Pará, Emilly Nunes retornou ao Brasil exclusivamente para desfilar para Normando. Após brilhar na temporada internacional, onde cruzou passarelas de Diesel, Elie Saab e Philipp Plein, ela fez história no país que a viu nascer.

Antes da moda, Emilly vendia chips de celular nas ruas do Pará. Hoje, vende narrativas de pertencimento com a elegância de uma supermodel indígena. A ancestralidade não foi adereço, foi statement. E quando seus pés tocaram a passarela… meu bem, até as luzes pareceram prestar reverência.

Dandara Queiroz: a voz tupi-guarani ecoando na passarela

A atriz, modelo e ativista Dandara Queiroz trouxe uma energia que atravessou desfiles e debates. Com origem tupi-guarani e criada em Três Lagoas (MS), ela brilhou para Flavia Aranha e se destacou na bela e profunda coleção de Ronaldo Fraga, além de ser destaque em Santa Resistência, Gustavo Silvestre, Ateliê Mão de Mãe e Apartamento 03.

A SPFW não é novidade para Dandara, que também protagoniza debates sobre consumo e meio ambiente no programa Planeta Menos 1 Lixo do Globoplay. Na passarela, seu caminhar carrega um peso que vai além da moda… é denúncia, força e beleza bruta. É raiz.

Um desfile chamado Brasil

A São Paulo Fashion Week completou 30 anos olhando no espelho e, pela primeira vez em muito tempo, vendo refletido não um ideal inatingível, mas o Brasil real. Com todas as suas contradições, sotaques, lutas e glórias.

Expedito, Nico, Isabel, Fernando, Emilly e Dandara são manifestações vivas de um país que aprende a se enxergar na moda. São rostos que dizem “nós existimos”, corpos que gritam “isso também é nosso”, passos que cravam pertencimento.

É sobre poder, mon petit. É sobre pluralidade. É sobre desfilar com alma, com história, com identidade. A SPFW N60 abriu o portão da passarela para um futuro com todos os corpos, todas as vozes, todos os sonhos. Babado, lacração e legado.

Foto: Divulgação

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